Tributos que matam
Revista Forbes Edição 132
29 de maio de 2006 - Página 65
Quando um consumidor paga uma conta de consumo, como uma conta de telefone, por exemplo, e a concessionária não acusa o recebimento, basta passar uma cópia do comprovante para a empresa que imediatamente o equívoco é resolvido. E se isso não ocorrer tão imediatamente assim, o consumidor pode mover uma ação judicial contra a empresa e exigir o ressarcimento em dobro do valor pago, conforme prevê a legislação brasileira. Ainda segundo as normas nacionais, a empresa não pode inserir o nome de um consumidor no cadastro de restrição ao crédito sem que haja a certeza absoluta de que a conta não está paga. Todas essas medidas visam proteger o consumidor de arbitrariedades muito comuns no passado. Quando se trata de empresas privadas, comprovar o pagamento de uma dívida é simples e, quando a cobrança do mesmo débito é feita duas vezes, a empresa trata logo de se desculpar com o cliente.
A simplicidade, no entanto, não é a mesma quando o que está em jogo são dívidas tributárias. Nesse caso, o contribuinte tem de enfrentar uma verdadeira via sacra para comprovar que um tributo está realmente pago e, algumas vezes, é mais vantajoso para a empresa pagar o mesmo imposto duas vezes (isso mesmo duas vezes!) para se livrar dos empecilhos que a suposta falta de pagamento pode causar. Isso ocorre porque a Receita Federal, com o intuito de evitar fraudes, não permite que o contribuinte apenas apresente a guia paga. É necessário que ele faça o chamada envelopamento, que nada mais é do que colocar dentro de um envelope a guia paga e um pedido para que seja feita a retificação. Essa retificação, no entanto, pode levar meses para ser concluída e é justamente aí que está o grande problema. O resultado dessa burocracia fiscal é que muitas empresas deixaram de participar de licitações ou, para evitar prejuízos, pagaram o mesmo tributo duas vezes.
Foi o que ocorreu, por exemplo, com a empresa Medtronic, fabricante de equipamentos médicos de alta tecnologia que fatura cerca de R$ 100 milhões por ano. Segundo o diretor Caio Ortiz Kugelmas, a empresa quase perdeu uma licitação de R$ 500 mil porque não constava nos cadastros da Receita Federal o pagamento de um Darf (Documento de Arrecadação de Receitas Federais) de R$ 100. Pagar o mesmo imposto duas vezes foi a única solução encontrada pela empresa. “0 Darf não teria sido enviado pelo banco à Receita Federal. Para não perder a licitação, recolhemos o mesmo imposto duas vezes”, afirma Caio Kugelmas.
Como o cruzamento das informações é feito eletronicamente, quando ocorre qualquer erro no preenchimento do Darf, ainda que haja o pagamento, o caso é encaminhado para a Procuradoria da Fazenda. “Mas a empresa só fica sabendo que está em situação irregular quando precisa da CND (Certidão Negativa de Débitos)”, diz Kugelmas. “Só que nem sempre o motivo é falta de pagamento. Muitas vezes são erros no preenchimento”, diz o advogado Marcos Ferraz de Paiva, do escritório Choaib, Paiva, Monteiro da Silva e Justo. “No entanto, em vez de chamar o contribuinte, mandam para a procuradoria”. Nessa etapa, explica o advogado, não há como o contribuinte se defender, já que a defesa só é possível na atuação fiscal ou na execução. Resta ao contribuinte realizar o chamado envelopamento (uma petição explicando que houve uma falha e que o imposto está pago) e aguardar a resposta da procuradoria que pode levar até um ano.
A situação é tão complicada que o advogado afirma que chega a sugerir aos seus clientes que, quando o valor não for muito alto, paguem o mesmo imposto duas vezes para evitar prejuízos ainda maiores para a empresa, como ficar impedida de participar de licitações. “Dependendo do débito, chego a recomendar isso ao cliente porque assim ele resolve o problema e depois peço a restituição.”
O advogado Luiz Fernando Oshiro, do Moreau Advogados, afirma que um dos seus clientes deixou de participar de 30 licitações devido a um débito com a Receita Federal, que diz ser indevido. De acordo com ele, para evitar perdas maiores, em alguns casos, o cliente é obrigado a participar do processo licitatório por meio de empresas intermediárias. “E, com isso, fica prejudicado nos valores”, garante.
O fato é que ninguém gosta de trabalhar em situação de irregularidade. “As empresas querem atender à legislação, mas é difícil por conta da burocracia”, afirma Fábio Ribeiro, da consultoria DOCS Inteligência Fiscal. “O sistema tributário é muito complexo”, concorda o tributarista Waldir Braga, do escritório Braga & Marafon. “Além de pagar uma alta carga tributária, os contribuintes brasileiros têm de arcar também com uma alta carga tributária indireta, com uma quantidade enorme de obrigações acessórias. Essa carga tributária também está entre as mais altas do mundo”, afirma o advogado Roberto Pasqualin, sem esquecer a enorme burocracia.
O executivo Caio Ortiz Kugelmas lembra que as empresas têm de preencher de 200 a 300 Darfs por mês. “A complexidade aumenta a probabilidade de erros e nós temos um funcionário só para verificar se os formulários foram preenchidos corretamente. Isso, com certeza, aumenta o custo Brasil”, diz. Outra dificuldade, segundo Kugelmas, é saber como a Receita está vendo a empresa. “Eu sei que os impostos estão pagos, mas o difícil é saber se isso está constando corretamente na Receita”, explica. Diante disso, o executivo afirma que contratou uma empresa só para verificar sua situação junto à Receita Federal.
O custo para manter um departamento só para cuidar do relacionamento com o Fisco também é alto. Fábio Ribeiro, da DOCS, estima que funcionários que trabalham para cuidar da parte fiscal e tributária representem 30% da folha de pagamento das grandes empresas. E as perdas não param por aí. No Brasil são necessárias 29 pessoas para cuidar da área tributária de uma empresa que tenha o faturamento de R$ l bilhão. A média global é de um funcionário. Além disso, uma pesquisa feita pela DOCS com 250 empresas de São Paulo revela que, em média, três vezes por semana as empresas mandam um funcionário a postos fiscais. As empresas pesquisadas recebem, em média, de 21 a 50 autuações por ano. “Isso tem um impacto direto no custo Brasil”, diz Ribeiro. Como se não bastasse todo esse gasto, há empresas que contratam consultorias para verificar se constam, no Fisco» os pagamentos e as entregas de declarações feitas pela empresa.
Não são apenas as pequenas e médias empresas que sofrem um verdadeiro pesadelo na hora que precisam de uma CND. Grandes empresas, até mesmo as listadas no Nível l da Bovespa, também sofrem com isso. Uma pesquisa realizada pela DOCS revela que, das 34 empresas qualificadas como Nível l da Bovespa, apenas uma tem certidão negativa emitida pela Receita Federal do Brasil. “Os índices são alarmantes, pois, em um processo competitivo onde as empresas são inseridas, as questões com o Fisco interferem de uma forma que as questões estratégicas são obrigadas a perder o seu tempo em função destes problemas”, diz o autor da pesquisa. “Isso demonstra uma relação natural que ocorre no mercado, a maioria das empresas brasileiras possuem algum tipo de problema de situação fiscal”, diz Ribeiro, lembrando que isso não significa a falta de pagamento de tributos. Situações como a discussão do valor de tributos na esfera judicial ou, então, erros no preenchimento de guias são as causas mais freqüentes para que as empresas não consigam a emissão da Certidão Negativa de Débitos.
“A burocracia do Fisco impacta de forma crescente o trabalho estratégico das companhias e, no caso de empresas listadas em Bolsa, pode impactar de forma negativa sobre o valor do papel no mercado ou criar uma preocupação em relação às variáveis negativas sobre o futuro da empresa”, afirma Ribeiro.
Não são apenas os empresários brasileiros e os investidores estrangeiros que estão preocupados com a burocracia fiscal brasileira. A International Finance Corporation (IFC), braço financeiro do Banco Mundial, também está preocupada com isso, explica Roberto Pasqualin. Ele lembra que os últimos dados divulgados pelo Banco Mundial, há dois anos, colocam o Brasil no ranking dos países mais burocráticos e isso fez com que o escritório local da IFC procurasse alguns especialistas brasileiros para tentar solucionar esse problema. “O objetivo é mudar essa situação. É uma desburocratização”, afirma o advogado, que coordena o grupo que cuida das questões tributárias.
Ele comenta que esse grupo fez uma série de propostas que foram encaminhadas, pela IFC, aos governos estaduais e federal. “Eles (os governos) começaram a estudar, mas de forma muito lenta”, diz. Diante de todos os problemas na esfera tributária, Pasqualin explica que resolveu focar o estudo no problema da CND. “A demora na emissão da certidão gera muitos problemas para as empresas”, diz.
O grupo criou duas frentes de trabalho. A primeira elaborou um anteprojeto de lei que será encaminhado ao Congresso, que prevê a simplificação para os trâmites para emissão das certidões. A outra pretende trabalhar junto ao Executivo para tentar reduzir a quantidade de atos que têm de ser praticados para conseguir uma CND.
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