O peso do caos tributário

Revista Exame Edição 849

17 de agosto de 2005 - Página 100

Logo Revista Exame Que a carga tributária no Brasil passou da conta e se transformou em desvantagem na competição com os demais países emergentes não é nenhuma novidade. Enquanto aqui o Estado engole quase 38% do PB em taxas, contribuições e impostos consumidos pelas engrenagens da máquina publica, no Chile, uma carga tributária de 17,3% quase erradicou o analfabetismo, reduziu a miséria e ainda é capaz de financiar obras públicas. Também não é nenhuma novidade que volta e meia nasce no governo algum projeto de reforma que, feitas as contas, acaba representando mais um peso nas costas das empresas. Um levantamento da Fundação Getulio Vargas feito sob encomenda do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (Etco), obtido com exclusividade por EXAME, mostra o desastre que representaria um aumento do ICMS na reforma tributária que tramita no Congresso. Caso a alíquota média do ICMS passasse de 11,5% para 13,6%, cerca de 4 milhões de empregos desapareceriam e a economia do país perderia 83 bilhões de reais ao ano. Um resultado desastroso, para dizer o mínimo. “As empresas não suportariam mais um aumento da carga”, diz Emerson Kapaz, presidente do Etco. Mais impostos significam mais trabalho e mais dinheiro gasto para atender o Fisco. Poucas vezes, porém, é possível enxergar em detalhes os contornos absurdos que o fardo tributário representa no dia-a-dia das empresas brasileiras. Outro estudo, realizado pela consultoria Pricewaterhouse-Coopers e também obtido em primeira mão, avaliou o departamento tributário de 74 grandes empresas de consumo e varejo no Brasil e de 211 multinacionais do setor em 36 outros países. O resultado é um retrato de como o aumento da carga e da burocracia fiscal transformou a rotina dos negócios num ambiente caótico, repleto de armadilhas.

As companhias brasileiras gastam por ano nada menos que 12 bilhões de dólares apenas para manter seu departamento tributário — quase quatro vezes a média internacional. Enquanto em boa parte do planeta é preciso ter um funcionário na área fiscal para cada bilhão de dólares faturado, no Brasil são necessários 29. “A legislação tributária transferiu para as empresas a obrigação de recolher impostos — uma responsabilidade do Estado”, afirma Luis Reis, consultor tributário da Price. “Para atender a essa incumbência, as companhias aumentaram a estrutura e os custos de seu departamento tributário.” Esse inchaço atinge empresas de todos os setores. A Medtronic, fabricante de equipamentos e produtos médico-hospitalares com faturamento anual de 9 bilhões de dólares, mantém na matriz americana 30 000 funcionários — e apenas 0,2% trabalha no departamento tributário. Sem fábricas a operação brasileira emprega 50 pessoas — 6% delas cuidam exclusivamente das operações fiscais.

Na holding Rezende Barbosa — controlador da Nova América, dona da marca de açúcar União —, é preciso administrar o pagamento de quase 200 tipos diferentes de impostos, taxas e contribuições. Isso consome cerca de 30% do faturamento. “A sangria é grande”, diz Alberto Asato, diretor-superintendeme do grupo. De acordo com o levantamento da FGV, em algumas indústrias — como a têxtil, a de combustíveis e a de automóveis —, o peso dos impostos alcança 50% das vendas líquidas. Há sobrecarga até para as empresas de software que prestam serviços tributários. “O Brasil é o país onde a adaptação de programas tributários dá mais trabalho, porque a legislação muda muito”, diz Meva Su Duran, diretora de produtos da subsidiária brasileira da SAP. “Aqui mantemos uma equipe de dez pessoas para cuidar de 580 clientes. No México, há apenas uma pessoa responsável por 400 clientes.” Situação idêntica vive a Oracle. “No Brasil, temos mudanças nos programas todo mês”, diz Elisabete Waller, diretora de consultoria da empresa em São Paulo. “A média mundial é de uma alteração a cada seis ou oito meses, no máximo.”

O excesso de gente e de trabalho serve, em primeiro lugar, para dar conta da burocracia. De acordo com o levantamento da Price, nos demais países, cerca de 57% do custo do departamento tributário cobrem operações triviais, como preenchimento de formulários e checagem das normas. No Brasil, os cuidados com a papelada consomem 74% do orçamento. Para piorar, isso não garante que o trabalho fique completo. A maioria dos diretores tributários tem certeza de que, mesmo pagando todos os impostos em dia, se errar um detalhe no preenchimento de um formulário — por menor e mais tolo —, será punida pelo Leão. “A grande preocupação é atender às normas do Fisco”, diz Pedro Henrique Fernandes, gerente de tributos da Kraft, um dos principais fabricantes de alimentos do país. “Mesmo fazendo tudo certo, corremos o risco de ser autuados.”

Cerca de 70% dos 50 funcionários da área fiscal da Kraft no Brasil nem passam perto dos escritórios da matriz, em Curitiba. Ficam na porta das fábricas e nos centros de distribuição do grupo apenas para conferir as notas de cada um dos 68 000 fornecedores — se um deles sonegar, a Kraft será considerada solidária no delito e acabará punida pelo Fisco. A papelada gerada pelas transações pode ser solicitada pelo Fisco e precisa ser arquivada em certos casos por até 20 anos. A Kraft guarda 100 000 caixas de documentos distribuídas numa área de 35 000 metros cúbicos - o que, equivale a 14 piscinas olímpicas abarrotadas de papéis. É uma dinâmica de trabalho impensável em outras unidades da companhia no mundo. No resto da América Latina, por exemplo, nem sequer há departamentos exclusivos para cuidar de impostos. O serviço, por ser muito mais simples, é feito por funcionários da área contábil ou da tesouraria.

O aumento constante da carga tributária gera distorções surrealistas, capazes de inverter a lógica dos negócios. Veja o exemplo da Elektro, distribuidora de energia que atende municípios do interior de São Paulo e Mato Grosso do Sul. Cada vez que os tributos sobem, a conta de luz aumenta, fazendo com que a inadimplência cresça. Para cobrar os devedores, a empresa precisa gastar mais dinheiro. Só que, às vezes, é o próprio governo que está inadimplente. Há cinco anos, a Elektro briga na Justiça para reaver 11,5 milhões devidos por sete prefeituras — às quais paga tributos regularmente. “O aumento de tributos acaba se transformando em um incentivo à sonegação”, diz Orlando González, presidente da empresa.

Para complicar, a legislação brasileira muda sem parar e virou um labirinto de normas e exigências burocráticas. De acordo com o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), de 1988 para cá houve l,5 mudança tributária por hora — o que totaliza 220 000 mudanças. O 1PI sobre uma Coca-Cola Lemon, por exemplo, foi reduzido à metade, porque foi criada uma lei que beneficia refrigerantes à base de sucos de frutas. Um carro produzido no Brasil, como o Fox, da Volkswagen, hoje custa 15% menos nas revendas do México, porque as exportações aqui ganharam algumas concessões e lá a carga fiscal é menor. O consumidor cearense paga 12% menos que o paulistano por uma mesa de escritório fabricada na cidade de São Paulo, pois os incentivos fiscais se popularizaram no Nordeste do país. A papelada exigida pelo Fisco brasileiro também não pára de aumentar. Triplicou o número de declarações fiscais exigidas das companhias nos últimos dez anos, segundo levantamento do escritório de advocacia e consultoria tributária Braga & Marafon, de São Paulo. Hoje, a Receita exige 22 documentos — alguns têm de ser apresentados semanalmente. Só para comparar, no Chile, um dos países de legislação tributária mais simples do mundo, as empresas pagam apenas dois impostos.

Diante de toda essa complicação, não é uma surpresa que as disputas tributárias estejam crescendo. Dados da Justiça Federal mostram que, nos últimos cinco anos, os processos do Fisco contra os contribuintes aumentaram 50%. Uma pesquisa da consultoria tributária Docs, de São Paulo, com 250 empresas, revela que 96% delas receberam mais de 21 autuações da Receita no último ano — algumas foram chamadas mais de 50 vezes pelo Leão. O levantamento da Price mostra que, para aliviar a pressão dos tributos, muitas companhias resolveram encarar a queda-de-braço com o Fisco. Quase 80% das empresas entrevistadas questionam judicialmente o pagamento do PIS ou da Cofins.

Para se garantir nas disputas, recorreram a consultorias tributárias e jurídicas. Nos últimos três anos, quase metade das empresas no Brasil elevou o gasto com consultores e escritórios de advocacia, enquanto no resto do mundo essa procura aumentou 40%. “O mercado local se aqueceu tanto que, desde o início dos anos 90, o número de consultorias tributárias quase triplicou”, diz o advogado Gilberto Luiz do Amaral, presidente do IBPT.

Pagar apenas o imposto devido é uma preocupação cada vez mais pertinente para empresas que querem sobreviver dentro da lei num ambiente em que imperam a informalidade e a sonegação. Mas o excesso de burocracia dá margem a erros, tanto dos contribuintes quanto da própria Receita — e o Fisco não perdoa nada. “Ficou comum a Receita cobrar dívidas já pagas”, diz o advogado Andrei Fernandes, do escritório Barbosa Müssnich & Aragão, do Rio de Janeiro. No passado, os enganos eram resolvidos com mais tranqüilidade. Quando o Fisco detectava uma falha, enviava um comunicado e dava um prazo para a companhia se explicar.

O procedimento mudou. Qualquer dívida pode enquadrar a empresa na lista de fraudadores notórios. “A Receita não discute mais nada”, afirma a advogada Silvania Tognetti, do Barbosa Müssnich. “Quem erra por desconhecimento é tratado como sonegador.”

No mercado ficou célebre um incidente ocorrido com a Votorantim. O grupo, que fatura cerca de 3 bilhões de reais por ano, ficou pendente com o Leão por uma dívida de l O reais —já quitada — que o impedia de disputar licitações.

Para se livrar do problema, pagou outra vez. Procurada, a Votorantim não quis comentar a divergência. Quando os valores são mais altos, a situação se complica. É o que acontece com outra empresa brasileira, cobrada em 45 milhões de reais pela Receita. “Essa dívida já foi questionada na Justiça em 1991, e a empresa ganhou o processo”, afirma António Carlos do Amaral, advogado que defende a companhia.

“Não há a menor chance de o Fisco ganhar agora.” Por que o Fisco se dá ao trabalho de gastar recursos públicos para brigar por uma causa perdida? EXAME procurou a Receita Federal, mas não obteve respostas. Advogados e consultores dão uma explicação: quando o Fisco recorre à Justiça contra uma empresa, ela é obrigada a depositar o valor da dívida em juízo, e os recursos engordam os cofres do Tesouro. Ações desse tipo costumam levar de dez a 15 anos para ser julgadas.

Para a maioria dos empresários e executivos, o peso dos impostos na linha de custos é tão grande que se tomou estratégico conhecer o impacto dos projetos de lei em tramitação no Congresso. “Eles precisar, saber o que está em discussão no Legislativo em detalhes para não ser pegos desprevenidos e também se organizarem para discutir a nova lei”, diz César Pinela, diretor executivo da Mastersaf, consultoria especializada em legislação. Desde o ano passado, a equipe da Mastersaf monitora projetos de lei que tratam de tributos. Foi graças a esse tipo de informação que, no ano passado, os empresários conseguiram se mobilizar para deter o aumento de impostos e de contribuições previstas na MP-232.

Recorrer às consultorias, no entanto, traz alguns riscos. Muitas delas simplesmente ensinam a sonegar. No levantamento da Price, cerca de 8% das companhias ouvidas se mostraram dispostas a aceitar planejamentos tributários arrojados, no limite da legalidade, caso eles aliviassem o peso dos tributos. No resto do mundo, nenhuma empresa se mostrou disposta a assumir esse tipo de risco. Outro problema é a falta de preparo de alguns consultores. Em julho, grandes empresas, como Pão de Açúcar, Adria e Sucos Dei Valle, foram apontadas como sonegadoras pelo Fisco paulista devido a uma operação mal administrada por consultorias tributárias. Os consultores ofereceram um pacote de serviços que incluía compra, processamento e exportação de soja para que as empresas pudessem abater créditos de ICMS. O esquema é legal, mas as consultorias realizaram operações fictícias e apresentaram ao Fisco notas frias.

“O país tem a chance de aliviar o caos tributário na reforma do ICMS que tramita no Congresso”, diz Marcelo Fortes, tributarista do escritório paulistano Machado, Meyer, Sendacz e Opice. “O problema é que toda reforma relacionada a tributos começa com a boa intenção de simplificar a lei e de reduzir a carga, mas termina multiplicando as regras e aumentando o valor dos tributos.”

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